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Estamos experimentando um tempo inédito. A pandemia provocada pelo Covid-19 tem causado grande angústia na população, espalhando o medo de ser contaminado. As medidas de contenção, com o necessário isolamento social, comportam dificuldades pessoais como a solidão e o desalento, além de dificuldades sociais como o problema econômico, que aumenta o desemprego e espalha a fome. O maior problema, porém, é que o vírus tem ceifado vidas em grande escala. Dados oficiais atestam que, até então, o número de mortos chegou aos 70.000. É consenso, porém, que o número real seja bem maior e as projeções para os próximos meses é de um incremento substancial.
A realidade interpela a nossa fé e diante da dor também nós fazemos ecoar o grito dos crentes que, diante do terror do nazismo, questionaram o silêncio de Deus: “Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto?”. Ou melhor, repetimos o brado de Jesus crucificado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).
A esse justo grito de dor do ser humano têm-se dadas respostas muito distantes da fé cristã. Parece-nos que no lugar do Deus Bíblico se tem anunciado uma caricatura sadista de um deus que está se vingando do ser humano por causa de seus pecados. Embora o pecado tenha mesmo consequências pessoais e sociais, o que temos constatado em nossas redes sociais é a difusão de textos bíblicos que, retirados de seu contexto, parecem corroborar a chegada do fim dos tempos. Difundem-se vídeos com falsos sinais no céu fazendo uma interpretação apocalíptica da realidade. Facilmente compartilham-se pregações onde a imagem de Deus é de tal modo deturpada que nem conhecemos mais o Deus criador, aquele que libertou seu povo do Egito e alimentou sua esperança através dos profetas. Chegamos a duvidar do Deus que por amor se fez um de nós e nos amando entregou a própria vida. Parece não conhecermos mais o poder misericordioso Daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos e que enviou seu Espírito porque sempre quis ficar muito perto de nós.
É verdade que a dor pela morte de tantas pessoas não se pode consolar com apenas doces palavras. É verdade que as dificuldades sociais causadas por um momento como este exigem muito mais que uma resignação religiosa. É verdade que estamos todos sofrendo ao ver nossas igrejas trancadas e sermos impedidos de alimentar a esperança através da celebração dos mistérios da nossa fé. Porém, ao meu ver, essa dura realidade aponta mais para uma feliz renovação que para um fim catastrófico. Desta feliz renovação aponto apenas três sinais de esperança:
- 1 - Renovação da vida de fé. A possibilidade do contágio com o Covid-19 e o grande número de mortos têm nos apresentado uma profunda verdade: nós não somos os donos da vida. Estar diante da morte nos possibilita enxergar a nossa debilidade e, com humildade, reconhecer que somos necessitados. Isso nos convida a enxergar a vida como dom, a reconhecer que tanto seu início como seu fim dependem de um Outro. Para nós cristãos este Outro não é qualquer um, mas é nosso Pai, é Deus-Pai. Assim, como filhos, agora temos a oportunidade de renovar a fé neste Pai que tem o poder da vida e da morte e isto não nos aterroriza, ao contrário nos tranquiliza, pois “se não estamos sozinhos, se Ele está conosco, aliás, se Ele é o nosso presente e o nosso futuro, por que temer?” (Bento XVI). A nossa fé em Deus sairá dessa dificuldade ainda mais solidificada.
- 2 - Revalorização da Igreja doméstica. Se de um lado é verdade que padecemos pelo impedimento de celebrarmos a fé comunitariamente, sobretudo, sem poder celebrar a Eucaristia, por outro lado é também verdade que, talvez mais que nunca, estamos aprendendo a enxergar a beleza de ser uma igreja familiar, doméstica. É necessário lembrar que a nossa experiência de fé começou como uma “assembleia que se reúne em sua casa” (1Cor 16, 19). Ou seja, a experiência dos casais que rezam juntos, dos pais que se tornam os verdadeiros catequistas de seus filhos, da família que dá mais tempo para escutar as histórias dos mais velhos, nada mais é que uma experiência de valorização das nossas raízes. Nós precisamos da Eucaristia e rezamos para que nossas celebrações sejam possíveis o quanto antes, mas nunca mais poderemos esquecer do quão importante é transformar o nosso lar em verdadeira igreja.
- 3 - Solidariedade. Existe um sábio adágio popular sempre repetido por nosso povo que diz que “o que não vem através do amor, vem através da dor”. O que temos constatado é que o coronavírus não poupa ninguém: morrem ricos e pobres, doutos e incultos, americanos e asiáticos… Isso nos faz perceber que todos estamos interligados, fazemos parte da mesma família, a família humana: a doença de um atinge a muitos e a salvação de um é a vitória de todos. A comunhão na dor tem se expressado também através da solidariedade de nosso povo: diversas campanhas de arrecadação de alimentos, partilha entre vizinhos, manifestações de proximidade aos profissionais da saúde, atenção aos mais vulneráveis, etc. Notamos que tinha razão Santo Agostinho quando afirmava “se alguém julga ter entendido as Escrituras divinas ou parte delas, mas se com esse entendimento não edifica a dupla caridade, a de Deus e a do próximo, é preciso reconhecer que nada entendeu”.
Enfim, em tempos de coronavírus a fé tem encontrado um terreno fértil para seu amadurecimento. Sábios se mostrarão aqueles que discernirem na privação um motivo para valorizar o que é essencial e na crise uma oportunidade para crescer na fé. Confiemo-nos ao Senhor com as mesmas palavras de Papa Francisco: “Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: ‘Não tenhais medo!’ (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro, ‘confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós’ (cf. 1 Pd 5, 7)”. Assim seja!
Por Pe. Evandro de Santana Andrade
Membro do clero da Diocese de Serrinha (BA), mestrando em Patrística, em Roma, Itália.
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